Uma Narração do Academismo no Brasil
No decorrer de sua já tradicional presença no mercado de arte paulista, o “James Lisboa Escritório de Arte” nos presenteou em sucessivos leilões com belíssimas e significativas obras de cunho acadêmico. Desta vez foi mais longe… conseguiu um lote de 70 quadros que nos mostra um panorama bastante abrangente do Academismo brasileiro.
Pensamos então em abrir o catálogo com uma sinopse desse período conhecido como “Academismo” que foi uma manifestação do pensamento e institualização do sistema de arte adotado no Brasil – pelo poder absolutista então constituído – Don João VI – do início do século XIX (1816) até meados do terceiro decênio do século XX (1931), durando portanto 115 anos ca.; passando por diversos regimes, como a nossa elevação à condição de Reino Unido, a Independência do Brasil e o Império e a posterior Proclamação da República.
Por volta de 1800 foi criada a “Aula Pública de Desenho e Pintura, a partir do modelo-vivo. É no mínimo divertido o comentário de Adolfo Morales de Los Rios y Garcia de Pimentel (1858-RdJ 1928 – Arquiteto, urbanista, professor e historiador. Dizia ele:
“O modelo era um homem branco, não muito jovem, descarnado, mesmo malfeito. Os alunos e o professor olhavam para o triste indivíduo, mas não o reproduziam sobre o papel, onde apareciam belas figuras, que nada tinham com a imagem viva, mas sim com a imaginação.” 1
Foi instalado em plena vigência do “neoclassicismo 2” sem considerar a estética barroco-rococó da nossa realidade artística. Absorveu sucessivamente as estéticas românticas, realistas e simbolistas sempre preservando a formalidade acadêmica; e através dela, se incumbiu de formar “um símbolo de identidade nacional” consoante com as diretrizes políticas de seus patrocinadores que tinham o desejo de por-se em pé de igualdade com a cultura européia, da qual, afinal, uma liliputiana mas importante parcela de nosso povo já era descendente 3. Nos diz Roberto Pontual em outras palavras, na obra abixo citada:
“O problema fundamental aberto pela vinda e estabelecimento da Missão – ou seja a modernização imposta pelos centros dominantes à cultura das regiões periféricas, com a perda da individualidade destas em troca com seu emparelhamento com o que vai à frente na marcha do mundo – recoloca-se, sob outras circunstancias na contemporaneidade, nas propostas de hoje que não cessam de aprofundar sua internacionalização a fim de encontrar o possível equilibrio e aplenitude fertilizante di universal.”
Como não poderia deixar de ser, aquela manifestação foi baseada nos princípios das academias de arte européias 4; era portanto apenas um método de ensino artístico que transformava um “artista” em um profissional treinado e reconhecido por uma “Instituição”, que pressupunha o seguimento de um conjunto de regras e normas estabelecidas para a satisfação de interesses coletivos de quaisquer espécies.
Com certa defasagem, nosso processo artístico no fim do século XIX e no século XX reflexionou aquele europeu que se repetiu na nossa arte moderna. Nossa história continuava a ser escrita na Europa, pelo menos até meados do século passado quando a capital da arte contemporânea passou para a America.
Aproveitando a oportunidade desencadeada pela crise causada pela queda do “Grande Corso”, “o Légion d’honneur e ex-Secretário Perpétuo da Academia-Instituto Francês”, Joachim Lebreton – afastado de seus cargos e obrigado a se exilar – aportou no Rio de Janeiro em 1816, como encarregado de chefiar a Missão Artística Francesa 5 e propôs a criação de uma escola de arte seguindo o modelo da respeitada Academia Francesa. Seu projeto envolvia a criação de cursos graduados de formação tanto para futuros artistas como para técnicos em modelagem, decoração, carpintaria e outras atividades afins, inéditos não somente no Brasil, mas também em Portugal.
Iniciou seu funcionamento em 1826, após dez anos de intermináveis dificuldades causadas pela “burocracia oficial” luso-brasileira e de uma diretoria local portuguesa – empossada depois da morte de Lebreton em 1819 e capitaneada pelo pintor português Henrique José da Silva – que bem representava o temor ainda existente junto ao topo da pirâmide social, às idéias bonapartistas ainda postas em discussão mesmo após a “Restauração dos Bourbons – Louis XVIII…”. Como conseqüência, Nicolas Taunay retornou à França (1821) e Debret em 1831 levando consigo seu aluno predileto Manoel José de Araújo Porto-Alegre, depois barão de Santo Angelo 6, que desempenhou papel fundamental como professor e intelectual na mobilização das artes plásticas do século XIX, e que ao contrário de Debret, não mais retornou ao Brasil, vindo a falecer em Lisboa.
O Academismo representou um avanço nos métodos brasileiros de ensino de arte. Ao empirismo dos processos correntes de aprendizagem artística e profissional, substituiu-se com uma metodologia; que, na época, era absolutamente harmonizada com aquela européia 7. Em grandes pinceladas, artistas, dentro ou não da Academia, ajudaram a fixar a imagem do “artista como homem livre numa sociedade de cunho burguês” e da arte “como ação cultural leiga” substituindo o artista-artesão, submetido à Igreja e seus temas ou a políticas oficiais ligadas ao poder.
Para o fim do século o Academismo romântico começou a dar espaço para a introdução de elementos realistas, mas conforme entende Lilia Schwarcz 8, esse espaço foi limitado à descrição dos detalhes da anatomia, dos objetos e da natureza, e o Romantismo idealista continuou a predominar na concepção geral, no propósito e na atmosfera.
Nada como a visão perspectiva que os anos nos oferecem para transformar as bolorentas verdades de se qualificar o Academismo somente como uma escola autoritária e retrógrada; conceitos amplamente utilizados com o sucesso desde o início da ascensão das vanguardas modernas no fim do século XIX e durante o Modernismo ao longo do século XX, que pensava ter coroado definitivamente o processo da evolução artística. Mesmo que anacrônico esse mito moderno é injusto mas foi e ainda tem sido usado em alguns eruditos. = pintura contemporânea = A Modernidade bem como o Academismo deram lugar à Pós-modernidade que também descartou o que foi produzido nos anos anteriores.
Essa atitude impede o reconhecimento e a compreensão de valores que foram importantes para a cultura que os deu origem e das válidas e criativas formas de diálogo com o passado como as estabelecidas pelos acadêmicos. Devemos considerar como mais justa a tentativa de se penetrar no espírito daquele período e ver as coisas como eles viam.
Espero que o atual leilão possa reavivar, entre os colecionadores, uma nova etapa de discussões sobre um período tão importante da recente história da arte em nossa Terra.
Confira o catálogo Online Completo do Leilão de Arte – Grande Coleção de Arte Acadêmica Brasileira.
1 “Dicionário das Artes Plásticas no Brasil”; Roberto Pontual et alii; Civilização Brasileira; Guanabara, 1969.
2 Carlos Cavalcanti no artigo “Predomínio do Academismo Neoclássico” op. cit. acima; mostra que o neoclassicismo, de origem classicista Greco-romana, aparece em oposição à galanteria e ao decorativismo do rococó aristocrático como resultado do violento processo da revolução burguesa.
3 “O Conde de Gobineau; o inimigo cordial do Brasil”, Readers, Georges; Saraiva-Paz e Terra; Rio de Janeiro, 1988.
4 As “academias de arte” nasceram no final do Renascimento (1563 – sob a proteção de Cosimo I de’Medici – duque de Florença e grão-duque da Toscana); alguns anos depois (1593 ca.) foi a vez de Roma – Accademia San Luca – quando tomaram o lugar do aprendizado informal seguido pelas “bottega del pittore…” . Oitenta e cinco anos depois, Luiz XIV, através de Charles Le Brun foi criada, nos mesmos moldes, a “Academia Real de Pintura da França”. “Artista Acadêmico” significa, a rigor, simplesmente aquele que ingressou e foi treinado em qualquer uma das academias de arte.
5 “A missão artística francesa”; Pereira das Neves, Lúcia Maria Bastos; Professora titular de História Moderna da Uerj; Cientista do programa Nosso Estado/Faperj; Pesquisadora do CNPq e do Pronex Dimensões da Cidadania; ver “Currículo Lattes”.
6 Enciclopédia Itaú Artes Visuais; ad vocem.
7 Em termos de estilo, o Academismo nacional nasceu sob o signo neoclássico, inspirado nas obras de pintores como Jacques-Louis David – o principal nome da escola neoclássica francesa e mestre de Jean-Baptiste Debret , integrante da Missão Francesa – que enfocava o rigor na composição, o desenho claro, a anatomia exata, o apelo ético e cívico; qualidades que agradavam ao poder constituído. Mas em pouco tempo foi substituído pelo Romantismo que deu força a diversos movimentos nacionalistas na Europa, e que no Brasil influiu da mesma forma.
8 A antropóloga paulista Lilia Katri Moritz Schwarcz, nasceu em 1957. É doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e atualmente professora titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas na mesma universidade (vide Currículo Lattes). É autora de importantes obras:
1. Raça e diversidade (colaboradora); FFLCH-USP, 1995.
2. “As Barbas do Imperador”; Prêmio Jaboti; Cia. das Letras, 1998.
3. “A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis (com colaboração de Paulo Cesar de Azevedo e Angela Marques da Costa)”; Cia. das Letras, 2002.
Por: Valerio Pennacchi