O homem de pedra – Sergio Camargo
Documentário que estreia no “É Tudo Verdade”, em abril, novo livro e mostra no Rio em setembro marcam os 20 anos da morte do artista Sergio Camargo.
Não era como o das outras meninas o pai de Maria Camargo. “Eu o via sentado no ateliê, capaz de ficar horas e horas olhando para as árvores, um único ponto”, lembra a filha do artista Sergio Camargo. “Aquilo era meu pai trabalhando.”
Só depois de grande, entendeu que ele enxergava em tudo, do tronco de uma árvore no quintal à mordida numa maçã, uma espécie de ordem secreta. Depois tentava eternizar essa ordem nos contornos do mármore branco que talhava.
Sergio Camargo, um dos maiores nomes da vertente construtiva no Brasil, morreu há 20 anos, quando a filha ainda era adolescente. Agora, roteirista de cinema, ela decidiu juntar os cacos dessa memória num curta-metragem que estreia no mês que vem, dentro do festival É Tudo Verdade, relembrando a vida desse artista que faria 80 anos em abril.
Na esteira do filme, um livro preparado por ela e pela artista Iole de Freitas sai no segundo semestre com os textos deixados pelo artista. Em setembro, o Paço Imperial, no Rio, recebe uma grande retrospectiva das obras de Sergio Camargo, que depois abre o calendário de 2011 do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires.
“Precisei pensar em quem era essa pessoa que era meu pai, quem era esse artista”, diz Maria Camargo em entrevista à Folha. “Só o tempo é capaz de tornar nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras.”
São dela as palavras que abrem o filme. Dizem que o escultor que ganhou fama na Documenta de Kassel e na Bienal de Veneza, que bateu a marca de US$ 1,6 milhão -maior valor absoluto já pago pela obra de um brasileiro- num leilão da Sotheby’s de Nova York em novembro passado, gostava de tango, Pixinguinha, sorvete de abacaxi e Roberto Carlos. Também que ele odiava heavy metal, novelas e humor grosseiro.
Não é o Sergio Camargo da luz e da geometria empírica do mármore esse que está em “Se Meu Pai Fosse de Pedra”. É o homem pai da cineasta, obcecado pelo trabalho, um tanto ausente, que deixava pistas dos pensamentos em guardanapos e anotações datilografadas.
“Tem poemas dos 15 anos de idade, você já vê neles um olhar para a geometria, a lua no céu, as circunferências”, lembra Maria. “Ele tinha uma coisa febril em torno da obra dele, não ficava um dia sem trabalhar.”
Coisas vãs fundamentais
Nem sem escrever. “Preciosas Coisas Vãs Fundamentais”, o livro com os textos do artista, faz uma seleção das folhas que sua filha achou pelo ateliê. Numa delas, Camargo fala do “ceder da árvore ao vento”, que “é natural, porém comove”. Também se pergunta se suas construções não passam de “banais feitos de concretude airosa”.
São devaneios arfados depois cortados pelo pé no chão, o peso da matéria, a “casa na paisagem” e a “paisagem na casa”.
“É o mesmo raciocínio do texto que estrutura as esculturas”, diz Iole de Freitas, amiga de Camargo e uma das editoras do livro. “São escritos com uma poética própria do Sergio, com uma elegância, uma sensibilidade e ironia muito grandes.”
Talvez por causa dessa mesma sensibilidade, Camargo era convidado o tempo todo por artistas mais jovens, como Lygia Clark, Mira Schendel e mesmo Iole de Freitas a visitar seus ateliês e opinar sobre os trabalhos ainda em construção.
“Quando ia lá, dizia que queria ver as sobras, tinha muito mais interesse pelo esboço, as coisas que viriam a ser”, lembra Freitas. “Percebia o âmago do processo, atitudes nascentes.”
Esse mesmo pensamento estava nas próprias obras. Camargo trabalhava medidas exatas, aniquilava excessos, lapidava a escala. “Ele tinha um tino para o espaço que era uma coisa sensacional”, lembra Raquel Arnaud, galerista que conheceu o artista nos anos 70 e hoje detém seu espólio. “Por isso, ele não tem obra com defeitos.”
Foi Arnaud que fechou o ateliê do artista em Massa, na Itália, quando ele morreu. Tinha instruções dele para jogar fora tudo que fosse ruim, atitude que reflete até hoje no valor que suas obras atingiram. “Passamos vários dias lá, num frio louco, vendo obra por obra”, lembra Arnaud. “Aí que a gente viu que ele tinha morrido.”