Experiências secretas – Flávio de Carvalho
Numa sala de luz fria, a arquivista usa luvas brancas para mexer nas pilhas de papéis. Um silêncio incômodo contrasta com os documentos de alta voltagem nessas caixas de plástico.
Depois de mais de dez anos de negociações, a Unicamp comprou a metade que faltava dos arquivos de Flávio de Carvalho (1899-1973), até agora na casa de um amigo do artista.
No fim de vida solitário que teve, Carvalho deixou com J. Toledo, autor do “Dicionário de Suicidas Ilustres”, que depois se matou, quase tudo o que estava em seus arquivos na fazenda Capuava, em Valinhos (SP).
Juntou pó até agora esse conjunto de projetos arquitetônicos, filmes inéditos, manuscritos e textos sobre moda e psicanálise. Abertas as caixas, o silêncio sobre a figura ímpar de Carvalho, um dos maiores e mais polêmicos nomes do modernismo, começa a se dissipar.
Dessas caixas empoeiradas vai sair uma boa parte do que estará nas mostras dedicadas ao artista neste ano -da retrospectiva no Museu de Arte Moderna à Bienal de São Paulo, passando por exposição no Reina Sofía, em Madri- e um livro com reflexões sobre a moda.
No “álbum dos comensais”, como Flávio de Carvalho chamou seus recortes fotográficos e memórias pessoais, estão mensagens de Oswald de Andrade, Maria Della Costa, Eleazar de Carvalho e outros que passavam temporadas de ócio na fazenda Capuava, construção emblemática do modernismo no Brasil, que o artista projetou para ser a sua casa.
“Sem óculos, só posso ver com os olhos da alma”, anotou o autor de “O Rei da Vela” num canto. “E os olhos da alma tenho sempre voltados para o antropófago Flávio de Carvalho.” Nos anos 50, quando jantares na fazenda em Valinhos tomavam ares expressionistas e festas à beira da piscina de luz vermelha arrebanhavam a nata intelectual do país, Carvalho já era a figura histriônica que irradiava a vertente mais libertária do pensamento modernista.
Àquela altura, já tinha desafiado uma procissão de Corpus Christi, indo contra o fluxo de boné e flertando com as devotas -a chamada “Experiência n. 2”. Desenhos que fez de sua mãe morrendo, a célebre “Série Trágica”, chocaram o público. Sua primeira exposição tinha sido fechada pela Delegacia de Costumes por causa dos nus e seu Teatro da Experiência, interditado pelas heresias da peça “Bailado do Deus Morto”.
É a mesma peça que a Bienal de São Paulo pretende reencenar em Valinhos e transmitir em tempo real para o pavilhão no Ibirapuera em setembro.
Seu projeto arquitetônico para o palácio do governo do Estado de São Paulo, que está nos arquivos recuperados, tinha canhões de luz tão cenográficos quanto as máscaras de alumínio que inventou para o palco e pistas de pouso para aviões em terraços simétricos.
Era uma obra mais de atitude do que resultado formal. Carvalho falava numa “revolução estética” como “fenômeno de turbulência, com polarização de forças anímicas básicas”.
E ele desenhou esse contraste no ato de se vestir. Quando encena sua “Experiência n. 3”, de meia arrastão, saia e chapéu, está ao lado de senhoras comportadas em plena metade dos anos 50. Carvalho desfilou pelas ruas de São Paulo com seu “traje de verão”, propondo uma nova arquitetura do corpo, no mesmo ano em que Juscelino Kubitschek lançou os planos para a construção de Brasília, utopia arquitetônica nacional.
Mas fica difícil entender que fragmento de cada uma das experiências era a obra em si. Depois de escapar ao linchamento na procissão de 1931, escreveu um livro de reflexões. As roupas que usou no verão de 1956 já foram exibidas como se fossem obra de arte, mas foi a caminhada em si, da qual restam só fotografias, que contou.
Na mostra que o Museu de Arte Moderna de São Paulo abre em meados de abril, documentos das performances, livros de sua biblioteca guardada na Unicamp, além de um recorte de seus desenhos e pinturas, vão tentar dar conta da história.
No Reina Sofía, em maio, detalhes de seus projetos arquitetônicos vão mostrar outra cara do ser fragmentário chamado Flávio de Carvalho.
Fonte: Folha de S. Paulo