Sérgio Milliet (São Paulo SP 1898 - idem 1966)
Escritor, crítico de arte, sociólogo, professor, tradutor, pintor.
Sérgio Milliet da Costa e Silva fez os estudos primários e secundários em São Paulo. Em 1912, vai para a Suíça. Em Genebra, inicia o curso de ciências econômicas e sociais, completando-o em Berna. Em 1916 torna-se colaborador da revista Le Carmel. Publica seus primeiros livros de poesia, Par le Sentir, em 1917, e Le Départ Sur la Pluie, em 1919. Retorna ao Brasil em fins de 1920. Participa da Semana de 22 em São Paulo, adere à plataforma modernista e torna-se defensor e incentivador das novas idéias sobre arte e literatura divulgadas pelo grupo. Volta à Europa em 1923 e fixa-se em Paris, de onde acompanha o desenvolvimento das novas teorias a respeito da arte. Colabora nas revistas brasileiras Klaxon, Terra Roxa, Ariel e Revista do Brasil, envia textos estrangeiros para publicação no Brasil e traduz poemas de modernistas brasileiros para a revista Lumière. Convive com escritores e artistas modernistas brasileiros até regressar definitivamente ao Brasil, em 1925. Nesse ano cria, com Oswald de Andrade (1890 - 1954) e Afonso Schmidt (1890 - 1964), a revista Cultura. Em 1927, torna-se gerente do Diário Nacional, jornal paulista do Partido Democrático, fundado nesse ano. Em 1935, liga-se ao grupo de intelectuais formado por Paulo Duarte, Mário de Andrade (1893 - 1945), Rubem Borba de Morais, Tácito de Almeida, entre outros, que idealizam a criação do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, e é nomeado chefe da Divisão de Documentação Histórica e Social desse departamento.
De 1937 a 1944, atua como professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, a que é ligado desde a fundação, tendo exercido o cargo de secretário de 1933 até 1935. Conhece o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908) e o auxilia a viabilizar sua expedição etnográfica. A partir de 1938, escreve regularmente artigos sobre arte e literatura para o jornal O Estado de S. Paulo, iniciando um período de intensa produção na área da crítica de arte. Publica Pintores e Pintura, 1940, O Sal da Heresia, 1941, Fora de Forma, 1942, e A Marginalidade da Pintura Moderna, 1942. Estreita sua convivência com pintores paulistas e começa a pintar. Entre 1941 e 1944, colabora para a revista Clima. Viaja para os Estados Unidos em 1943 e, ao retornar, publica A Pintura Norte-Americana. Assume a direção da Biblioteca Municipal de São Paulo e promove uma série de atividades culturais, como palestras e mesas-redondas, das quais participam Luís Martins (1907 - 1981), Lourival Gomes Machado, Osório César (1895 - 1980), Roger Bastide (1898 - 1974), Luis Saia (1911 - 1975), entre outros. Em 1944, publica Pintura Quase Sempre e o primeiro volume de Diário Crítico, antologia de dez volumes publicados até 1959. Na abertura do 1º Congresso Brasileiro de Escritores, em 1945, inaugura a Seção de Arte da Biblioteca Municipal, formando o primeiro acervo público de arte moderna brasileira, e nesse ano torna-se militante da Esquerda Democrática.
Um dos principais articuladores da formação do Museu de Arte Moderna de São Paulo - MAM/SP, criado em 1948 e aberto ao público em 1949, é membro do seu conselho no setor de pintura e escultura. Participa das reuniões que preparam a volta do Partido Socialista, em 1947. É um dos fundadores e o primeiro presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte - ABCA, criada em 1949. Idealiza a exposição retrospectiva de Tarsila do Amaral (1886 - 1973) no MAM/SP, em 1950, para a qual redige o texto de apresentação do catálogo. Em 1952, publica Panorama da Poesia Brasileira. É diretor artístico do MAM/SP de 1952 a 1957 e diretor da 2ª, 3ª e 4ª Bienal Internacional de São Paulo, entre 1953 e 1958. Aposenta-se em 1959.
Em 1967 o MAM/SP organiza exposição retrospectiva de seu trabalho pictórico. Em 1981, inicia-se a reedição do Diário Crítico, cujo primeiro volume traz um célebre prefácio de Antonio Candido (1918). Em comemoração do centenário de nascimento de Milliet, são promovidos eventos na Biblioteca Municipal de São Paulo Mário de Andrade, no Museu da Imagem e do Som - MIS/SP e na Universidade de São Paulo - USP, em 1998.
Comentário Crítico
Crítico literário e intelectual atuante no meio artístico e cultural brasileiro e, em especial, paulista, tem grande relevância pela influência que exerce tanto sobre a geração modernista quanto sobre a geração de artistas e escritores que despontam nas décadas de 1930 e 1940. Muito interessado nos problemas do seu tempo, sua reflexão crítica acompanha os caminhos da arte moderna brasileira desde a década de 1920 até o início dos anos 1960. A princípio, atua na imprensa prioritariamente como comentarista literário. Influenciado pelas idéias predominantes no meio sociocultural brasileiro do período, adota posição em prol de um brasileirismo na produção artístico-literária, embora com ressalvas em relação às posturas mais nacionalistas.
Os anos 1930 marcam uma mudança de orientação, quando deixa em segundo plano a poesia para dedicar-se à atividade crítica. Em 1932, é editado o livro Terminus Seco, nome da coluna que assinava no Diário Nacional, que traz artigos de crítica artística. Em 1936, publica Marcha a Ré, reunião de comentários sobre arte e literatura. Seus textos trazem reflexões sobre problemas da vida moderna, o homem contemporâneo e a crise que o envolve. Ao lado de discussões sobre arte, aborda idéias políticas e temas em pauta na realidade brasileira do período, como, por exemplo, a chamada literatura social. A partir de 1938, começa a escrever para o jornal O Estado de S. Paulo e a atividade voltada às artes plásticas torna-se mais regular. Em 1938, publica Ensaios, coletânea de textos sobre literatura, artes e história social, muitos deles publicados originalmente na Revista do Arquivo ou na coluna do Estado. Seus textos sobre arte quase sempre são referentes a acontecimentos cotidianos: exposições de artistas emergentes, salões, temas culturais em voga etc. Quase a totalidade de seus livros de crítica reúne artigos, notas, ensaios ou anotações pessoais, geralmente divulgados em jornal. Dono de uma escrita bastante pessoal, fluida, poética, maleável, adota o diário como forma de expressão preferida, para o que pesa também o caráter jornalístico da maioria de sua produção.
O jornal é mais um veículo pelo qual estabelece diálogo com outros intelectuais, envolvendo-se em debates e polêmicas. Uma das mais célebres delas foi travada com o artista plástico concretista Waldemar Cordeiro (1925 - 1973) nos anos 1950. A ressalva de Sérgio Milliet em relação à arte abstrata e ao projeto estético do concretismo diz respeito ao hermetismo, risco que os artistas correm ao enfatizar demasiado o exercício formal, comprometendo a comunicabilidade da obra. Cordeiro, que assinava artigos para o jornal Folha da Manhã, contra-argumenta acusando-o de defender uma arte oficial e tradicionalista. Arrefecido o debate, Sérgio Milliet reconhece a importância da participação concreta na arte brasileira, mas segue alertando sobre o perigo da exploração inesgotável de fórmulas, razão pela qual também é refratário à dita arte engajada.
Até 1945 transcorre um período de grande atividade no campo das artes plásticas, marcado não apenas por sua produção escrita, mas sobretudo por seu envolvimento em inúmeros eventos e movimentos culturais do cenário paulistano. Uma de suas principais preocupações é, certamente, atuar junto ao público didaticamente, buscando livrá-lo de preconceitos com relação à arte moderna e aproximá-lo dos novos valores estéticos. Nesse pressuposto ancora sua produção crítica e ação no meio cultural. Para ele, a tarefa do crítico é informar, explicar, esclarecer, compreender um fato segundo suas perspectivas históricas, colocar essas relações e significados ao alcance do público, abrindo uma compreensão em múltiplas direções. Sua produção guia-se pelos objetivos de elucidar, orientar e estimular o público.
Empenhado em introduzir a compreensão da arte moderna na sociedade, não segue uma posição teórica única, movido mais pela inquietação de revelar os diversos pontos de vista. Daí ter encontrado na forma do Diário Crítico a maneira ideal de expressar seus pensamento e impressões, expor a transitoriedade e maleabilidade das idéias sem aderir a uma postura ou corrente. O diário permite-lhe assinalar uma reflexão em processo, registrar sem precisar concluir. Nos dez volumes de Diário Crítico, revelam-se seu entendimento da função da crítica - o entrosamento de razão e intuição, a relatividade dos argumentos sobre os fatos - e os problemas centrais que o preocupam: a comunicabilidade da obra de arte, a capacidade de ser transmissível, a participação do artista na sociedade, a relação dos artistas com a época em que vivem, os condicionamentos sociais e culturais das obras, entre outros.
O trabalho na Biblioteca Municipal é esclarecedor da orientação ética e humanista presente em sua atuação, voltada à divulgação bem como ao cuidado com a preservação e a memória das artes. Ampliando o trabalho de remodelação iniciado por seu antecessor e amigo Rubem Borba de Morais, em sua gestão organiza os acervos, empreende novas aquisições, promove ciclos de conferências e a cria a Seção de Arte, que cumpre um importante papel formativo da geração de artistas jovens e do público em geral.
O acervo de arte sobre papel da Seção de Arte, constituído a exemplo das bibliotecas européias e norte-americanas, contém desenhos, gravuras e pinturas. Sérgio Milliet e sua colaboradora Maria Eugênia Franco privilegiam a produção dos artistas engajados às linguagens do próprio momento histórico, incorporando muitos dos jovens artistas das décadas de 1940 e 1950.
Há de ressaltar sua importância participativa no processo que resulta a criação do Museu de Arte Moderna de São Paulo - MAM/SP. Desde 1938, Milliet defende na imprensa a criação de um museu de arte moderna em São Paulo, insistindo na importância de criar instâncias de legitimação das diversas correntes artísticas contemporâneas.
A atividade na organização das primeiras bienais é reveladora de seu projeto crítico de característica pedagógica. As mostras por ele organizadas, além de expor a produção contemporânea, repassam os principais movimentos artísticos do século XX, numa clara estratégia de familiarizar o público com a trajetória da arte moderna internacional.
Sua desconfiança com relação a posições ortodoxas, que livra sua análise de preconceitos, por vezes o torna demasiado flexível e benevolente com a produção de seu tempo. Mas para Sérgio Milliet a flexibilidade e a reticência com relação às posições rígidas obedecem a uma orientação maior, de ordem metodológica. Advêm de seu contato com a sociologia norte-americana e a antropologia, de sua atuação como professor da Escola de Sociologia e Política e da opção pela abordagem relativista do fenômeno artístico.
A conferência intitulada Marginalidade da Arte Moderna, apresentada no 1º Congresso Internacional dos Críticos de Arte - Aica, em 1948, traz uma reflexão de caráter sociológico sobre a arte. Nela, Milliet tematiza a funcionalidade do gosto estético na organização da sociedade, ancorado em leituras de antropologia e sociologia, questionando-se sobre a influência da arte para a construção do consenso social. Com base nessa abordagem, constrói sua interpretação sobre a arte moderna, ligando as características formais da produção a aspectos vividos no período moderno, como a multiplicação dos contatos entre os sujeitos, a libertação dos condicionamentos, o desenraizamento provocado pela rápida mudança na ordem social. Daí advém, no seu entender, a situação marginal da arte moderna em relação ao gosto predominante e a posição de isolamento dos artistas contemporâneos.
Articulador de uma ação organizada em prol da arte moderna, sempre envolvido com a prática da vida intelectual e artística, Milliet exerce inegável influência no desenvolvimento artístico e cultural nacional e deixa importante contribuição para a crítica das artes plásticas brasileiras.
Críticas
"Desde que passou a pintar, seu conceito sobre pintura se modificou. A tal ponto compreendeu o problema pictórico que o seu primeiro gesto foi afastar-se da crítica de artes plásticas. Aos seus amigos íntimos, mormente pintores, dizia repetidas vezes: 'Se soubessem como é difícil pintar, não escreveriam tanto sobre pintura'. Em 'Considerações Inatuais', Sérgio, entre outras coisas, diz: 'Sempre me pareceu ridículo acreditar o crítico no valor normativo de suas elucubrações. Pior é considerar-se ele um ser superior que existiria mesmo sem o artista...' Mais adiante, assegura: 'A função da arte é exprimir a emoção através da qual nos elevamos acima do vulgo, participamos do humano profundo que é na realidade o divino'. Poderia prolongar-se nesta nota sobre Sérgio. Foi ele um e muitos. Sua vida - sempre ilustrada por humano traço - esplendeu sem o colorido do fogo-fátuo... Partiu o nosso amigo, partiu sem avisar a ninguém, de um instante para outro e sem atoarda publicitária. Partiu acompanhado do grande silêncio".
Quirino da Silva
HOMENAGEM a Sérgio Milliet. Apresentação de José Geraldo Vieira e Quirino da Silva. São Paulo: MAM, 1969.
"Na crítica de Sérgio Milliet, o bom-senso se traduz em 'necessidade de construção plástica' (equilíbrio); a curiosidade em 'sensibilidade', a 'imaginação' é inventividade, é liberdade de pesquisa. Estas são as permanentes estéticas. Para Sérgio, não há arte sem lirismo, mas é preciso ponderação para não incorrer em facilidade que negam a plástica. Ele quer explicar o 'caos' da incomunicabilidade da arte com o público. Encontra a razão na quebra dos padrões clássicos do fazer artístico e, no âmbito da sociedade, aponta como causa as mudanças aceleradas de normas e valores sociais. Para a arte recuperar a sua função social de comunicar-se com o público, a sociedade precisa ser reconduzida novamente à estabilidade e a nova estabilidade advirá com o socialismo".
Lisbeth Rebolo Gonçalves
Gonçalves, Lisbeth Ruth Rebolo. Sérgio Milliet, crítico de arte. São Paulo : Perspectiva, 1992, p. 45.
"Ele sentiu e expressou já nos anos 20, por exemplo, aquilo que Mário de Andrade só perceberia nos anos 40: que havia (haviam todos), de alguma maneira, falhado. Milliet criou (enquanto outros se engajavam nas ilusões do triunfalismo) um espírito eminentemente (auto) crítico que se objetivou em sua obra poética, e, posteriormente, em sua obra crítica e historiográfica. ´Para que me acreditem poeta modernista/falo de trilhos/de automóveis/mas como me pesa esse exotismo do aço´ (Saudade, 1925). No poeta modernista, a saída desse abismo que o sujeito via na história foi, em primeiro lugar, uma profunda reflexão sobre o Eu frente ao projeto nacionalista. Ao contrário da voga/nacionalista de vários matizes que tomou a cultura modernista, principalmente após a Semana, Milliet conservou sempre uma postura desconfiada e até mesmo irônica com a obrigatoriedade de se ter ´as coisas do Brasil´ como material obrigatório para se pensar a modernidade, ao contrário do ´ufanista crítico´ Oswald de Andrade (como o definiu Roberto Schwartz) ou do otimismo da brasilidade de Mário de Andrade. Isso lhe acarretou uma postura distanciada, embora participativa, dos meios de atuação dos intelectuais do período".
Francisco Alambert Júnior
Alambert Júnior, Francisco [1992]. Milliet, contra o exotismo do aço. O Estado de S. Paulo. Cultura. Suplemento, p.2.
Exposições Coletivas
1942 - São Paulo SP - 7º Salão do Sindicato dos Artistas Plásticos, na Galeria Prestes Maia
1948 - São Paulo SP - Mario Zanini, Rebolo, Sérgio Milliet e Volpi, na Galeria Domus
1952 - Veneza (Itália) - 26ª Bienal de Veneza
1954 - Goiânia GO - Exposição do Congresso Nacional de Intelectuais
1954 - São Paulo SP - Arte Contemporânea: exposição do acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo, no MAM/SP
1956 - Veneza (Itália) - 28ª Bienal de Veneza
Exposições Póstumas
1969 - São Paulo SP - Homenagem a Sérgio Milliet, no MAM/SP
1980 - São Paulo SP - A Paisagem Brasileira: 1650-1976, no Paço das Artes
1982 - São Paulo SP - Do Modernismo à Bienal, no MAM/SP
1982 - Rio de Janeiro RJ - Universo do Futebol, no MAM/RJ
1992 - São Paulo SP - O Olhar de Sérgio sobre a Arte Brasileira: desenhos e pinturas, na Biblioteca Municipal Mário de Andrade
1993 - São Paulo SP - 100 Obras-Primas da Coleção Mário de Andrade: pintura e escultura, no IEB/USP
1997 - São Paulo SP - Mário de Andrade e o Grupo Modernista, no Centro Cultural e de Estudos Aúthos Paganos
2000 - Valência (Espanha) - De la Antropofagia a Brasilía: Brasil 1920-1950, no IVAM. Centre Julio Gonzáles
2002 - São Paulo SP - Da Antropofagia a Brasília: Brasil 1920-1950, no MAB/Faap
2004 - São Paulo SP - Tudo é Desenho, no CCSP
2004 - São Paulo SP - Gabinete de Papel, no CCSP
Fonte: Itaú Cultural